Branco no Branco – Kazimir Malevich
Os momentos são os tesouros mais valiosos que você conquista durante a vida. Vivenciar bons momentos e compartilhar alegrias e outras emoções com as pessoas que amamos, isso é o que mais importa! (Caio Fernando Abreu)
Saudades antigas alcançam épocas afastadas, as mais remotas. Algumas vezes, em intervalos de anos, conseguimos desenrolar o novelo das lembranças e verificamos como era curto esse fio, embora não aparentasse. Estavam ali e não as percebíamos.
Só então é possível identificar que a existência seguiu rumos diferentes dos que imaginávamos. Juntando acontecimentos que pareciam dispersos, se vê perfeitamente que eles faziam parte do conjunto que posteriormente foi chamado destino. Desde quando as histórias começaram a se delinear, havia uma razão naquilo que antes considerávamos apenas acaso. E os acasos obedeciam ao objetivo que iria confluir para uma causa final.
Voltando àqueles tempos, podemos assistir ao cotidiano transformando-se em vida. A banda de música tocava marchinhas após a missa das sete e início dos foguetes do Luís Fogueteiro. Usávamos os cachecóis tecidos pelas nossas mães para dificultar que a friagem vinda desde o Morro do Bandereiro entrasse livremente por entre a gola da camisa e a pele. Mas, de manhã não havia solução. A água era tão fria que ficávamos com medo dela trincar os dentes. Antes do término do almoço chegava o doce de limão guardado na terrina, a casca muito verde na calda transparente. Entre a cozinha e o quarto, ouvíamos o ranger das tábuas largas do assoalho sobre as vigas desgastadas, repercutindo nossos passos. A avó abria o armário, tirava o jornal da caixa e lia mais uma vez a notícia sobre a formatura da Iaiá, com foto da turma de saia plissada azul marinho, camisa branca e gravata da mesma cor da saia. Depois, já no quintal, chamava para ajudá-la com as frutas que estavam no pé. Plantinha do canteiro logo a frente balançava ao ritmo do vento. De lá víamos a chapada atrás igreja, coberta pela mata. Tantas cores se enroscavam para formar aquele cenário, pintado por mão invisível… Cheiro de café saindo pela janela indicava afago quando chegássemos à cozinha.
Tudo estava preparado para vivermos lá por muito tempo, mas a fotografia sobre a penteadeira parecia dizer que o céu ao fundo não seria azul para sempre. O destino determinou outro rumo. Desde quando ocorreu aquela partida, sentimo-nos deslocados em qualquer lugar.
Movidos pela nostalgia das ausências, pela vontade de reencontrar pessoas, situações e momentos, desembestamos pelas trilhas dos sonhos. Amparados nas lembranças, eles trazem os reflexos do mundo que terminou há muito. Restaura a possibilidade de visitar sentimentos longínquos, entranhados nos recintos da memória, cobertos por várias camadas depositadas pelo tempo. Quase desaparecidos, até pensávamos não existirem mais. Ao replicar os acontecimentos passados, a memória cria novamente aquela realidade, sobreposta à original. Através da conexão entre os sentimentos e os fatos de onde nasceram, o mundo quase extinto se reapresenta, para que possamos guardá-lo na mente, restituindo-nos a vida que estava fora. A nossa persistência incorporou os ambientes e trouxe-nos outra vez, não importando onde estejamos.
Para consecução dessa mágica, os sentimentos agem através de nós, com independência. Somos portadores, seus endereços, onde se viabilizam.
Existem na alma coisas que não são feitas pelo eu, mas que se fazem por si mesmas, possuindo vida própria. (C. G. Jung).
Coisas valiosas que ainda persistem nos dias, antes que sumam de vez. Quando os dias sumirem de vez, o vazio ocupará o lugar deles. O que acontecia no tempo desaparecerá, substituído pelo nada. No escuro, inútilmente iremos procurar a mão, que não sabemos de quem, para indicar o caminho.
Foram bons momentos compartilhados com as pessoas que amamos o que realmente valeu a pena. As vezes que caminhamos na praia, o vento batendo nos seus cabelos. A lua refletida no mar antes do céu e, depois, aparecendo e sumindo atrás das nuvens, como se estivessem brincando. Milhares de estrelas como olhos sobre nossas cabeças, talvez sabendo o que se passava dentro delas. O silêncio respeitou a perfeição se revelando na plenitude do momento. A realidade suave chegava sem aviso e, quase como compensação, trazia instantes mágicos, resgatados do ambiente selvagem a que estamos circunscritos e que o destino às vezes atua para enquadrar na perspectiva correta.
blade runner waltz
Em mil novecentos e oitenta e sempre,
ah, que tempos aqueles,
dançamos ao luar, ao som da valsa
A Perfeição do Amor Através da Dor e da Renúncia,
nome, confesso, um pouco longo,
mas os tempos, aquele tempo,
ah, não se faz mais tempo
como antigamente.
Aquilo sim é que eram horas,
dias enormes, semanas anos, minutos milênios,
e toda aquela fortuna em tempo
a gente gastava em bobagens,
amar, sonhar, dançar ao som da valsa,
aquelas falsas valsas de tão imenso nome lento
que a gente dançava em algum setembro
daqueles mil novecentos e oitenta e sempre. (Paulo Leminsky)
A capacidade de regeneração da memória, trazendo-nos os fatos quase desaparecidos, provoca ainda outro tipo de sentimento: a melancolia causada pela saudade que teremos no futuro dos fatos que ainda estão acontecendo.
Uma resposta
Logo no inicio da leitura me identifiquei por inteiro! Valeu demais. Obrigado